terça-feira, 26 de maio de 2009

Entre Barcos e Navios

Pequeno Barco na Enseada.

Grande Navio na Baia.

Qual caminho seguir?

Embarcações são artefatos ou construções elaboradas com o objetivo de navegar de forma segura permitindo o transporte de pessoas ou bens materiais sobre águas marítimas, fluviais ou lacustres. Esta é a definição de embarcação, comumente encontrada em nossos manuais de navegação e apostilas náuticas. Nesses impressos podemos encontrar diversas formas de diferenciação das embarcações.

Podemos distinguir as embarcações de acordo com o tipo de propulsão que usam: a remo, a vela, a motor. Podemos distingui-las de acordo com o seu material de construção: de madeira, de aço, de materiais compostos. Todas essas formas de distinção são precisas e objetivas, exceto uma: a que trata do tamanho das embarcações.

A princípio parece simples: Navios são as embarcações de grande porte; barcos são as embarcações de pequeno porte. Alguns nomes não deixam dúvidas quanto ao tamanho do navio; ninguém imaginaria um pequeno petroleiro tampouco uma grande jangada. Seria muito difícil você passar um final de semana no navio do seu colega de trabalho, a menos que você seja vice-presidente de uma multinacional. Ou seja, barco é aquilo que as pessoas podem comprar e navio é aquilo que gera emprego pra várias pessoas.

A vivência, no entanto, nos faz experimentar situações em que é impossível classificar as embarcações. Embora se diga que, não existem navios pequenos, alguns rebocadores, submarinos e até cargueiros do início do século são minúsculos perto de certos barcos mais novos, insignificante, perto de certos navios. E então, eles viraram barcos com o tempo? Embora se diga que não existe pequeno navio, não seria aqui o caso? Ou eles são, agora, grandes barcos?

Sabe, creio que o critério que primeiro distingue um navio de um barco não seja exatamente o seu tamanho, mas o nível de responsabilidade que está envolvido na navegação de um e de outro. Se você coloca numa embarcação sua família e seus amigos para fazerem uma viagem até a praia no fim de semana, o nível de responsabilidade envolvido nesta operação não é muito superior ao de uma viagem de carro até o sítio, embora seja mais complexo navegar do que dirigir. Mas se você assume o comando de uma embarcação construída e armada por outra pessoa, na qual trabalham diversos funcionários, e que realiza serviços para clientes transportando coisas sobre a água, você está no comando de um navio, de qualquer que seja o tamanho. Isso envolve muita responsabilidade.

Em segundo lugar, creio que o nível de complexidade da tarefa do comandante cresce, significativamente, de acordo com o aumento da responsabilidade. Um navio é muito maior que um barco, embora às vezes não pareça, pelo fato de alguns navios serem pequenos perto de alguns enormes barcos. Mas um navio possui sistemas complexos de manutenção da vida a bordo, de suas cargas, de suas máquinas. Um barco normalmente se destina a curtos trajetos e mesmo quando preparado para longas viagens, o faz de forma modesta, graças ao limitado número de passageiros que leva. Alguns barcos de transporte deveriam então ter outro nome, porque a tarefa de transportar pessoas, mesmo em barcos pequenos e curtos trajetos, envolve muito mais complexidade do que aquela que se espera na navegação de um barco.

Enfim, em meio a toda essa discussão sobre barcos e navios, me lembrei do haikai (poema tradicional japonês) que li há muito tempo em uma agenda. E percebi que essa distinção entre barcos e navios tem muito a ver com a nossa busca de marinheiros. Ansiamos por embarcar em navios grandes, onde possamos aprender sobre nossas fainas e enfrentar grandes mares, conhecer portos distantes. Quem ama e sonha com o mar, sempre sonha com muito mar, com o mar imenso que guarda o mistério do mar. Aquele que a gente só vê quando só se vê mar. E pra chegar nesse mar, é preciso embarcar em algum importante navio.

Se pararmos pra pensar no poema, veremos que ele parece nos apresentar uma escolha entre o pequeno barco e o grande navio. À primeira vista, podemos pensar: tenho que escolher entre o pequeno barco e o grande navio. Mas é preciso atentar para o fato de que é impossível chegar ao grande navio na baia, sem utilizarmos o pequeno barco na enseada. Portanto, não se trata de escolher entre um e outro, mas em como utilizar o pequeno barco. Você pode utilizá-lo para chegar ao grande navio, ou escolher navegar com ele pelo seu próprio caminho. Mas antes, é claro, você precisa decidir embarcar.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O sonho e os percalços... um caminho de descobertas

Para Dona Mara, Seu Conca, meus amigos do CFAQ da CPRJ e todos aqueles que tem contribuído com o que podem, acreditando ou não.

É muito difícil realizar um sonho. Mais difícil ainda é viver sem ter sonhos. Quero contar aqui sobre os caminhos que me levam a realização do meu sonho, porque me sinto obrigado a impulsionar outros a buscarem seus sonhos dentro de si, e a dividirem com o mundo a alegria da realização.

Um dia, quando menino, sonhava com o mar. Via revistas de lanchas e veleiros e desejava pilotar todos aqueles barcos lindos, conhecer aquelas paisagens, levar aquelas belas moças para grandes passeios. Sonhos de menino que se perderam com o tempo.

A vida me levou para o Planalto Central, e as escolhas profissionais que fiz me levaram para a sala de aula. O ofício nobre de professor me encantou, sobretudo o status que se conquista quando se tem tamanha responsabilidade e importância na vida das pessoas. E assim, segui sonhando que, um dia, quando pudesse juntar dinheiro suficiente, poderia ter um daqueles lindos barcos do meu sonho de menino.

Não conhecia, ainda, a profissão de marinheiro. Confesso que durante a época do vestibular, encruzilhada de escolhas na cabeça de crianças que, cruelmente, são forçadas a escolher tão cedo o que serão por toda a vida, nem considerei a possibilidade, pouco conhecida de participar da Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante.

Direcionei-me para os estudos de Sociologia e Antropologia, campo bem em evidência, numa época em que o presidente era sociólogo. Estudos muito interessantes, trabalhos garantidos como assistente de pesquisa e trabalhos acadêmicos. Assim, mantive ao largo aqueles velhos sonhos náuticos, sempre imaginados como um hobbie, algo para me ocupar na remota (cada vez mais) aposentadoria.

Mas meus alunos me levaram ao mar novamente. Em 2006 fui convidado por uma professora para conversar com os seus alunos sobre respeito em sala de aula. Alunos que só seriam meus dois anos depois desse dia. Conversando com essa turma, um dos alunos que mais “dava trabalho” à professora estabeleceu uma relação entre o que eu explicava e a vida a bordo de um navio. Sempre gostei de utilizar a fala de meus alunos para explicar o conteúdo, de modo que embarquei na fala deste.

Dois anos depois, eles não haviam esquecido daquela aula e no primeiro dia em que estivemos juntos veio o assunto de novo à tona. Junto com o assunto daquela aula, veio o pedido dos alunos para que construíssemos um barco. Professor de história que era pensei: se os Fenícios fizeram, porque nós não faríamos. Pode o leitor achar que o raciocínio é simplório, mas a história serve, também, para nos mostrar os feitos do passado e impulsionar-nos a nossas realizações. Desta forma, abracei a causa e começamos o projeto.

A idéia era ensinar aos alunos um pouco do que conheço sobre a arte da navegação e da navegação à vela. O objetivo do projeto era fazê-los compreender, de forma prática, as características das grandes navegações que foram responsáveis pelo descobrimento da América pelos Europeus.

Fui à Capitania dos Portos de Brasília para tirar uma carteira de Arrais amador, pois sabia que essa era a exigência mínima para conduzir um barco no lago Paranoá. Tirei a carteira, mas ao explicar ao Sargento da Capitania do meu projeto, ele esclareceu que seria necessário obter uma outra habilitação, a Carteira de Aquaviário, também conhecida como CIR. Imaginei que não poderia mais seguir com o projeto, pois não sabia como obter essa carteira. Mas, para minha alegria, a própria Capitania realizava o curso e a próxima turma estava começando no semestre seguinte. Inscrevi-me no curso e comecei no segundo semestre de 2008 a estudar no Curso de Formação de Aquaviários – CFAQ II/III. Formei-me no final deste mesmo ano e durante este curso minha vida pessoal e profissional sofreu uma grande reviravolta.

Ao longo do curso vi todos os velhos sonhos de infância retornarem sob uma nova forma, mais concreta, real, tangível. Descobri que a profissão de marinheiro depende de muito esforço, muito estudo e muita disposição para fazer-se ao mar. Características que descobri em mim ao longo de todos os meus anos de vida profissional. Hoje compreendo que não seria possível seguir esse caminho aos 17, 18 anos. E também compreendi que aos 17, 18 anos não é possível ainda, para muitos, compreender qual seu caminho na vida, qual é o seu sonho, qual trabalho realmente motiva e nos faz confirmar os laços de vocação com a profissão. Ainda me sinto professor, ainda sinto essa vocação dentro de mim. Embora não tenha completado nem a faculdade de Sociologia, nem a faculdade de História. Sinto-me professor por todos os alunos que passaram por mim e que confirmaram a minha vocação e meu sucesso em sala de aula.

Mas, infelizmente, descobri que ganhava muito menos como professor do que poderia ganhar na profissão de marinheiro. E que para realizar um bom projeto educacional náutico teria que singrar alguns mares para adquirir a experiência necessária para ensinar aos meus alunos. Assim, pedi as contas da escola e me lancei de cabeça nesse sonho.

Tentei negociar com a escola uma rescisão de contrato mas não houve acordo, por isso pedi as contas e segui meu rumo. Ouvi que não seria possível um acordo pois não era certo “mexer” com os direitos do trabalhador. Direito do outro de afirmar o que quiser para não ceder ao meu pedido. Tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim. Não recebi os direitos devidos por um certo artigo da CLT, sob outras alegações que, sinceramente, não consigo entender. O vento que venta lá, nem sempre venta cá. Se relato essa situação não é pela intenção de reclamar das condições de trabalho dos professores, mas para dar um panorama ao leitor do que vivi após essa etapa.

Sem muito dinheiro, após a rescisão, segui para o Rio de Janeiro para participar do CFAQ na Capitania dos Portos no Rio de Janeiro. As contas se acumulavam lá em casa e minha esposa se tornou especialista em malabarismos financeiros, todos legais, que fique bem claro. O discreto charme da classe operária: sortear as contas. E, bem, se em casa não ta dando para pagar as contas, eu tenho feito também meus malabarismos para seguir no curso e conseguir cobrir as despesas de passagem e alimentação durante esses meses.

Mas a vida nos reserva surpresas sempre. Algumas vezes levamos com a onda bem no meio do navio, nessas horas é melhor se segurar para não cair do convés. Outras vezes, vemos o céu se abrir no meio da tempestade.

Apesar de todas as adversidades que tenho vivido para concretizar meu sonho, algumas ajudas (do céu, do mar e da terra) renovam diariamente minha esperança no sonho e na humanidade.

Passei no processo seletivo, mas ao começar o curso não tinha a menor idéia de como conseguiria chegar até o fim. Consegui ajuda de tantas pessoas que seria injusto citar algum sob pena de esquecer de citar outros. Mas alguns fatos me causaram tamanha alegria que não poderia deixar de citar.

Ao começar o curso, disse aos colegas que estava procurando trabalho para pagar as despesas durante o curso. Automaticamente, parece que vi um exército em marcha para resolver meus problemas. Hoje posso dizer que tenho mais do que colegas, tenho amigos que quero conservar por toda a vida. E sonho poder embarcar com esses nobres marinheiros. Em pouco tempo, vi meus colegas se mobilizarem para conseguir um trabalho pra mim. Um deles chegou um dia à aula com um papel dizendo: passei em frente a essa loja e eles estão pedindo uma pessoa pra distribuir panfletos, lembrei de você e trouxe o endereço. Quando alguém anda pelas ruas e descobre a solução para um problema que não é dele, isto é solidariedade, um valor que estamos perdendo diariamente, mas é bom saber que ainda existem aqueles dispostos a resgatar esse valor. Não consegui o trabalho, mas surgiu outra opção, um trabalho num restaurante que estamos a ver, eu e outro amigo. Mesmo assim, o exército seguiu em marcha, e na noite de ontem tive a maior surpresa da minha vida. Um amigo me chamou num canto e perguntou como estava a situação financeira. Eu expliquei que estava apertado, que estou morando e comendo com um primo que divide comigo tudo o que tem, mas o dinheiro da passagem ta contado e não é suficiente. Ele se prontificou a ajudar e disse que ia falar com o pessoal. Voltei para a sala de aula e havia um bolo de dinheiro sob a minha apostila. Discretamente, com todo o cuidado para não me causar constrangimento, eles organizaram uma vaquinha para complementar o dinheiro da minha passagem. Como diria Chico Buarque: Tem certos dias em que eu penso em minha gente, e sinto assim todo meu peito se apertar...

Não importa muito o quanto eles arrecadaram, mas a beleza do gesto que realizaram. Posso dizer a esses amigos que a ajuda que me deram me fez ficar tranqüilo quanto às despesas do curso. Mas ganhei muito mais ao perceber que estou ingressando numa classe de pessoas que é capaz de realizar atos tão nobres.

Durante alguns anos, trabalhei em Brasília com pessoas muito instruídas, com bastante dinheiro e poder para mudar algumas coisas nesse país. Essas pessoas raramente se preocuparam em me perguntar como eu estava, se eu estava precisando de algo, ou mesmo se os professores, como classe profissional, estavam precisando de algo. E olha que nossa importância na vida de seus filhos vivia sendo ressaltada. Lembra-me a parábola de Malba Tahan do sábio que vivia oferecendo ao rei soluções para seus problemas. Para cada ensinamento do sábio o rei lhe dava prêmios. Um dia, este sábio foi encontrado morto em sua caverna por não ter o que comer e cercado dos prêmios conferidos pelo rei.

Quanto aos meus amigos marinheiros, serei eternamente grato a eles e sinto que tudo que posso fazer para retribuir o gesto deles, e de todos aqueles que tem me ajudado a concretizar meu sonho, é não esmorecer. Aprendi com uma amiga que: Quando a gente tem um sonho é preciso agir como se não houvesse outra chance para se viver, porque na realidade não há.

A todos estes que tem ajudado tanto, meu muito obrigado, meu compromisso de permanecer buscando o sonho e o desejo de embarcarmos juntos. É o que sinto de devo oferecer.

Cassio Loretti Werneck Pinto