Em primeiro lugar, antes de qualquer introdução, a meu ver um pouco desnecessária diante de um título como este, dedico este pequeno texto a todos aqueles que navegaram pelos mares do impossível, em busca de grandes descobertas. A todos aqueles que elevaram o espírito humano. Não o faço porque acredito que esteja assim laureando grandes marinheiros e, portanto, enaltecendo minha profissão, o faço porque creio que essa é a tarefa de qualquer educador: navegar por mares do impossível, em busca de grandes descobertas e assim, elevar o espírito humano. Para educadores, assim como para os marinheiros, navegar é preciso, embora nem sempre viver o seja.
Navegar é preciso, Viver não é preciso.
A afirmativa acima, famosa citação de Fernando Pessoa, já seria argumento suficiente em favor do ensino náutico. Educar é antes de qualquer coisa, ser preciso, ser justo. Não se pode educar ninguém sem ter uma atitude coerente com os valores que você afirma. Um educador que se mostra incoerente, impreciso, confunde seus educandos e, conseqüentemente, perde o respeito dos mesmos.
A educação, antes da difusão de conteúdos, consiste na difusão de valores. Valores morais, éticos, culturais, enfim, valores humanos. Por coerência, a boa educação deve valorizar os alunos. Desde o princípio, atribuindo a ele o valor de ser consciente, pensante, participante ativo; até o seu fim, transformando o seu valor inicial e dando-lhe mais valor ao fim do processo. Valorizar o educando no início do processo é uma decisão ética do educador e do sistema, mas aumentar seu valor é quase sempre conseqüência do projeto da escola.
Ou seja, a escola vê na transmissão dos conteúdos e no ensino formal das disciplinas, tal como ele se apresenta, uma forma de valorizar, aumentar o valor do aluno, no mercado de trabalho, no mercado acadêmico, na vida de forma geral. Bem, podemos observar que estes objetivos não tem sido atingidos de forma muito eficiente, principalmente no âmbito da escola pública. A educação, por pior que seja, sempre adiciona valor ao aluno, mas se quisermos elevar o valor profissional e político de nossa população, é inegável que precisamos de outros projetos, outras idéias a respeito de educação.
Mas pensar em uma nova forma de educar precisa ser algo que leve em consideração os objetivos desse educar e suas características principais. Durante os últimos cinco séculos, mesmo período em que foram desenvolvidas as grandes navegações, não por coincidência, desenvolveram-se e difundiram-se teorias e métodos para a educação. A educação, como fazer humano, obviamente é algo tão antigo quanto a própria humanidade, mas o desenvolvimento de teorias a respeito do tema, coordenado ao esforço de difusão desse processo são fenômenos típicos do período após o renascimento. Os gregos foram os inventores da idéia, da pedagogia, da Paidéia, poderão argumentar, mas respondemos que a difusão da educação para todos os níveis da sociedade para todas as culturas planetárias em parâmetros mais ou menos semelhantes (estágio da educação tal qual a temos hoje) é um fenômeno resultante do processo histórico que se iniciou com a construção do mundo moderno. Ainda que admitamos que os gregos foram os pais da pedagogia, temos que admitir também que essa filha dos gregos permaneceu infante por muitos séculos e talvez tenha chegado a adolescência por volta dos anos 1500.
Como conseqüência desse seu amadurecimento tardio, a pedagogia, ou as pedagogias, evoluíram nesse ambiente repleto de contradições e de conflitos de interesses que marcou a sociedade moderna. Desde o descobrimento das Américas, da queda das monarquias absolutistas até os dias atuais, a sociedade que desenvolveu as diversas teorias da educação foi sempre marcada pelo conflito nos campos da política e do pensamento. A sociedade que desenvolveu essa ciência da educação tem sido uma sociedade em que valores são transformados constantemente, em todos os campos da vida, e essa transformação constante se reflete na necessidade constante de reformular-se o próprio projeto de educação. Desse modo, poderíamos citar inúmeros casos de diversos e antagônicos métodos e propostas educacionais que marcaram a história da pedagogia moderna. Mas a questão central que queremos evidenciar diz respeito aos objetivos da educação e a coerência entre esses objetivos e os métodos adotados.
Apesar de todos a dialética que envolve a sociedade moderna/contemporânea e que marca profundamente o desenvolvimento da pedagogia, há um elemento marcante nessa sociedade, e mesmo impulsionador de conflitos, mas que diz respeito à educação: a sociedade pós-renascimento é marcada pela substituição do pensamento religioso pelo pensamento científico. Essa mudança na matriz de pensamento é fenômeno amplamente discutido e analisado por historiadores, filósofos e sociólogos e não corresponde ao centro de nossa argumentação, mas precisamos evidenciar alguns aspectos desse fenômeno que possuem relação direta com a educação.
O primeiro aspecto dessa mudança de pensamento, do predomínio da religião ao predomínio da ciência, que interfere sobre diversos aspectos da vida e da educação é o fato de que este processo não é instantâneo, imediato, sendo portanto, conflituoso e controverso. O reflexo deste aspecto na educação, assim como em qualquer aspecto da vida é que não se pode esperar que as pessoas acordem amanhã despidas de todas as idéias relacionadas à religião, como a teoria criacionista e a noção de Deus. A controvérsia entre ciência e religião gera determinadas polêmicas e muitas encruzilhadas ao pensamento, e isto se relaciona ao fato de que muitos de nossos valores éticos e morais tem suas origens em crenças religiosas, e nós, intimamente, não estamos inclinados a abolir esses valores somente por que eles não possuem embasamento científico. Essa controvérsia faz com que muitos cientistas, principalmente os mais sérios, questionem a própria ciência no que diz respeito a afirmações e negações definitivas. E toda essa contraditoriedade influencia e influenciou o processo de desenvolvimento das teorias da educação principalmente porque, para muitos dos teóricos, sempre foi necessário partir da definição do ser humano, de suas limitações e capacidades para estabelecer os valores e objetivos da educação. Podemos perceber, então, que em períodos de acalorados debates que envolveram cientistas e não-cientistas ao redor do tema da diferenciação dos humanos e da própria definição do que seria este ser, a educação ficou à mercê de todas essas variadas teorias, discriminatórias ou não, laicas ou religiosas.
O segundo aspecto da transformação da sociedade que interferiu no desenvolvimento da educação foi a variação de estruturas de poder após o Renascimento. Durante o Medieval, período do surgimento das primeiras universidades, o ensino estava ligado quase que exclusivamente as estruturas eclesiásticas. A própria formação militar era muito pouco estruturada, de modo que os chefes militares, oficiais, obtinham treinamento próprio e muito distinto, de acordo com a possibilidade de cada cavaleiro. A Igreja era a única que promovia uma estrutura de difusão do conhecimento de acordo com um projeto pré-estabelecido e igualmente oferecido a todos os seus educandos. Com a Era Moderna e o advento do mercantilismo, diversas escolas surgiram, para atender às oficinas que precisavam de mão de obra; para formar militares; para formar navegadores e outros profissionais que eram necessários no mundo moderno e que deviam ter um certo padrão de treinamento. Assim, a educação passou a atender a outros objetivos que não apenas a elevação da potencialidade humana a partir do conhecimento e do exercício do pensamento.
Ao largo desse tempo, as diversas escolas desenvolveram seus projetos educacionais pensando que tipo de educando eles pretendiam formar. Cada escola tinha como objetivo moldar o educando ao seu projeto de indivíduo, para o seu uso programado. A sociedade padeceu portanto de um projeto unificado de indivíduo, a educação deixou de ser a educação e passou a ser “as educações”. Essa multiplicidade de práticas e de valores parece ser uma marca do mundo moderno, e pode ser de fato muito difícil se afastar dessa característica, mas se quisermos pensar na educação como um processo de valorização do indivíduo, de qualquer forma que seja, precisamos admitir que por mais variados que sejam os processos eles necessitam sempre passar por determinados pontos fundamentais.
Assim, ousamos dizer que mesmo que você esteja formando um soldado para a luta na selva, um torneiro mecânico ou um cientista espacial, existem certos aspectos fundamentais desse processo de formação que precisam ser atendidos se desejamos obter sucesso.
O primeiro aspecto da educação que precisamos evidenciar diz respeito à maneira como os educandos são recebidos, admitidos no processo. Ser acolhido, ser valorizado desde a entrada consiste em um ritual fundamental para o sucesso no aprendizado. Isto não carece de demonstração, pode ser facilmente observado através do fato que estudantes que ingressam em cursos muito concorridos, sendo aprovados em exames muito exigentes, costumam ter um sentimento de valorização muito maior de seus cursos e suas profissões do que alunos de cursos menos concorridos. Todos sabemos da dificuldade que há em passar nos vestibulares para cursos de medicina ou direito, e percebemos que isso se converte em grande valorização desses aprovados, no entanto também sabemos que os estudantes de biblioteconomia, educação física ou artes são tão inteligentes quanto os estudantes de medicina ou direito, no entanto, poucos guardam o troféu de quinto colocado no vestibular de Química. Enfim, a valorização que o aluno tende a trazer de seus processos anteriores à admissão se reflete na auto-estima do mesmo e na sua eficiência durante o processo. Mas como fazer com que essa valorização se mantenha durante o processo, ou mesmo se torne evidente, quando não se trata de ser aprovado em vestibulares muito concorridos. Em outras palavras, como valorizar o aluno comum, num contexto comum, sem grandes manobras e pirotecnias? Simples: mostrar ao aluno que ele faz parte de um processo que está acontecendo, quer ele queira ou não, mas que pode ganhar muito com a presença dele. Enfim, alunos valorizados pelo processo tendem a entrar no processo de forma mais plena e obter maiores índices de aprovação.
Diante desse tópico, já podemos ouvir alguns professores gritando:
–“Mas eu agora tenho que convencer o aluno de que a educação é importante pra ele? Será possível que eu tenho que ficar bajulando o aluno pra ele aprender?”
Em primeiro lugar, educação sempre se tratou disso: Convencer alguém da beleza e do valor do conhecimento. Antigamente, quando professor mandava e aluno obedecia, o autoritarismo era uma coisa importante a se aprender, pra não apanhar na rua. Algum de vocês, educadores, que se sintam saudosos desses tempos podem embarcar para alguns países pelo mundo onde a sociedade ainda está estruturada dessa forma, será uma aventura esclarecedora para alguns, para outros pode ser a descoberta do paraíso. Mas para os demais, nós sugerimos que vocês percebam que os alunos merecem e precisam ser ouvidos, valorizados, participantes. Se nós desejamos criar uma sociedade democrática o primeiro lugar a praticar isso é na escola.
O segundo aspecto da educação que já insinuamos acima, consiste no fato de que educar é convencer alguém do valor do conhecimento. Como qualquer profissional, o educador também precisa defender o seu ofício enquanto o pratica. Os médicos sabem muito bem que, para cuidarem da saúde das pessoas e terem seus consultórios ocupados por clientes eles precisam explicar a importância da medicina para a população. Todo profissional inteligente sabe que a propaganda é a alma do negócio, só alguns professores parecem abrir mão desse conhecimento. Muitos professores e escolas partem do princípio que os alunos não precisam ser encantados, cativados e seduzidos para o aprendizado, esse mecanismo muitas vezes obtém resultados favoráveis porque essas escolas lidam com alunos que já tem esses valores por origem familiar, ou tem uma auto-estima tão baixa que aceitam as imposições do sistema educacional. Porém, no sistema de ensino amplo, e principalmente nas escolas públicas, notamos que este método autoritário não obtém resultados e pode conduzir as escolas a situações de colapso social e pedagógico. Assim, valorizar o aluno e fazer com que este valorize o conhecimento que pode adquirir consiste em um binômio fundamental para o sucesso do processo educacional.
O próximo aspecto fundamental da educação que precisamos abordar diz respeito ao processo de difusão de valores. Valorizar o aluno também consiste em oferecer a ele um processo de incremento de seus valores, de conhecimento de novos valores, de possibilidade de escolha de seus valores e de fortalecimento da autonomia do educando para estabelecer sua identidade através da adoção desses valores. Assim, uma das principais tarefas do educador é estabelecer limites. O primeiro valor que um indivíduo precisa conhecer para poder mensurar o seu próprio processo de valorização. É inegável a importância do entendimento do conceito e do valor dos limites no processo educacional. Esse tema tem todos os desdobramentos possíveis, desde os aspectos físicos das limitações corporais, geográficas, até os aspectos sociais, políticos e econômicos. A importância do estabelecimento dos limites para o desenvolvimento de qualquer processo pedagógico é um ponto de encontro entre teorias e pensadores da educação de quaisquer origens e correntes filosóficas.
Por último, na lista de aspectos fundamentais relacionados à noção de valorização do aluno, evidenciamos que a educação precisa ser um processo de constante construção do conhecimento e das habilidades dos alunos. De tal forma que os educandos possam constatar constantemente que estão adquirindo valor, através de processos de avaliação que permitam evidenciar as habilidades e competências adquiridas. Devemos mudar um pouco a perspectiva do processo tradicional de avaliação, em vez de termos a avaliação como uma forma de punição, uma ameaça ao aluno, deveríamos estabelecer as avaliações como forma de demonstrar aos alunos as competências adquiridas por ele e avaliar quais competências ainda precisam ser trabalhadas.
Bem, resumindo, o processo de educação, tal qual o concebemos nesse ensaio está relacionado a estes aspectos fundamentais: a valorização do indivíduo, e por isto entendemos primeiro compreender e faze-lo compreender o seu valor, e por fim incrementar este valor e a percepção deste valor; a transmissão dos valores morais, éticos e culturais que compartilhamos em nossa sociedade; a importância da transmissão da noção de limite, como forma de permitir ao educando sua inserção no contexto social e a sensação de valorização; e por fim, o fomento à curiosidade e ao instinto investigador, enfim, a sedução para o mundo do conhecimento.
Concluindo: educar é valorizar.
Então trazemos a questão:
A escola valoriza? A escola tem como proposta principal valorizar? Diante de tudo que vimos e estabelecemos, é inegável que a escola valoriza. É inegável até que qualquer processo políticos e social em que nos envolvamos valoriza, seja de modo consciente e conseqüente, ou não. Tudo o que fazemos nos dá valor. Mas o tipo de valorização obtido e proposto pela escola tem sido suficiente para atender às demandas a que ela está submetida, por parte dos alunos e da sociedade que receberá esse alunos?
Constatamos que a escola não tem valorizado os alunos de acordo com as demandas destes mesmos e tampouco de acordo com as demandas da sociedade. Os altos índices de evasão e reprovação são as provas mais cabais da ineficiência da escola em atender às demandas dos alunos. O nível da mão de obra disponível no mercado e de participação política na sociedade brasileira são as provas de que a escola falha em atender as demandas da sociedade. A escola falha porque não tem como proposta principal valorizar. A proposta principal da escola é ensinar conteúdos, o que tem algo de semelhante com educação, mas não é a mesma coisa. Ensinar conteúdos é uma parte da educação, mas não é, nem de longe o centro da questão. É como se nós quiséssemos fazer um médico apenas com aulas de diagnóstico; ou formar um piloto de avião ensinando apenas as técnicas de pilotagem. Educar é muito mais do transmitir conhecimento, é preparar um indivíduo para receber o conhecimento e não é isso que a escola tem buscado. Para mudar a situação de fracasso da educação é preciso rever seus objetivos e suas propostas.
A proposta de utilização do conhecimento náutico para a formação de alunos vem de encontro com todos os aspectos fundamentais da educação, embora não seja a única opção viável. Necessário é mudar, criar uma forma de educação que transmita valores e valorização aos alunos. Uma proposta de educação que se organize em torno de limites e de crescimento, de participação e conhecimento, principalmente o auto-conhecimento. Uma proposta de educação que se organize, acima de tudo, ao redor de um fazer que represente para o aluno o ato de fazer a si mesmo.
Podemos implementar essa proposta em diversos modos. Cabe aos marinheiros e amantes do mar evidenciar o valor da marinharia para essa proposta. Em um barco, navegando por rios, lagos e mares, a motor, a remo ou a vela, podemos aprender a respeitar os limites do corpo, das relações, da tecnologia. Podemos aprender a fazer muitas coisas, inclusive viver, harmoniosamente, respeitando nossos companheiros de viagem e o mundo ao nosso redor. Podemos aprender a valorizar o conhecimento e a nos valorizarmos através do conhecimento.
Acima de tudo, além de todas as considerações filosóficas e pedagógicas, é inegável que a navegação e a marinharia são faculdades humanas tão importantes quanto a locomoção e a agricultura. Este fato, somado à constatação de que o nosso planeta está cercado de mares e oceanos e pontuado por rios e lagos faz com que pareça muito estranho que não aprendamos a navegar desde a infância, assim como aprendemos a andar de bicicleta e a jogar bola. Navegar é preciso!